DEF-GHI indeed (parte 1 de 2)

1- Pegar uma conversa pelo meio é como lidar com um acontecimento pois, ainda que se possa deduzir, intuir ou perguntar a respeito do objeto ou seu andamento, uma coisa é certa: foi preciso pegar o bonde andando. Isto significa que em boa parte da jornada se esteve ausente. A nota relevante disto é que para fins de conhecimento, seja ele da ordem que for, para que seja possível se envolver com o movimento que atravessa a cena, vindo de todas as fontes e direções, é preciso também acontecer. Mais do que estar presente, é imperativo fazer-se presente e a isto chamamos de teoria. Na prática.

 

2- Minha primeira intenção era a de escrever sobre minha graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). O símbolo que eu tinha eleito para agremiar um ou outro evento exemplares do meu despreparo era o mormaço e a clausura nas salas de aula onde nada, ou quase nada acontecia. Somados ao meu despreparo trazido desde antes, minha vida universitária tratava-se basicamente disso: um enorme intervalo entrecortado pela vida.

No universo do aparelhamento da tão propalada bibliografia consagrada, as aulas que tive não me permitem, de uma forma geral, hoje afastá-las da ideia de que cientistas sociais aplicam teoria de uma forma muito aproximada daquela que chama o advogado de operador do direito. A divisão das tarefas, a fórmula arbitrária de designar diferenças entre abordagens e, ainda mais deficiente, o abuso na forma de estabelecer clivagens entre disciplinas nas humanidades completam o pano de fundo sobre o qual a aplicação absolutamente utilitária do cabedal teórico era administrado. Assim, questões relativas à amostragem, causalidade, quantidade, qualidade, conceitualização; noções relativas a ordenamento de conjuntos de dados e composição de séries pertinentes; especificidades sobre os dados experimentais nas ciências sociais; problemas relativos à percepção humana; todos estes aspectos constitutivos do exercício da pesquisa eram ou simplesmente ignorados, ou tratados de forma reificada em favor de um argumento militante de alguma fonte ou, por fim, eram apresentados segundo concepções redutoras próprias dos manuais de técnicas de pesquisa vendidos como se fossem metodologia. Ainda que esta seja uma remissão às minhas memórias e que esta história tenha suas exceções, quase todas já falecidas, não tenho nenhuma razão para afirmar que o painel apresentado seja exclusivo do curso ou mesmo da faculdade que eu vim a frequentar. De qualquer forma, a imagem do mormaço, da moleza e do tempo lento e difícil de passar ainda me serve, ainda que não muito.

Foi nesse clima que meu encontro com os escritos de Gregory Bateson se deu. Não me lembro exatamente do ano, provavelmente 2000 A.D.. Foi no quarto piso da Biblioteca Comunitária da UFSCar que abri pela primeira vez o exemplar de um livro que tinha como capa um Pensador de Rodin sentado em uma falésia a beira-mar, vestido com ceroulas. Mente e natureza: a unidade necessária, o livro que antes de mais nada busca apresentar ao leitor aquilo que todo colegial deveria saber e eu, universitário, não sabia. Confesso que desconfio ainda não saber. A primeira vez em que ouvi falar de Bateson eu estava a 180 quilômetros da cidade onde cursei minha graduação em Ciências Sociais. Em uma conversa propiciada por minha irmã caçula, amiga de infância de sua filha, ouvi de Étienne Samain, na época professor do curso de Multimeios da Unicamp, os elogios ao antropólogo britânico autor de Naven, Steps to an ecology of mind e Mind and nature. Vale dizer que não foi uma conversa agradável. Étienne, para deixar claro seu ceticismo com relação ao esforço e trabalho dos alunos que o procuram, revelou que tinha sempre a vontade de descalçar os jovens pesquisadores e tocar suas meias para ver se as mesmas se encontravam suadas. Quis responder que tinha vontade de fazer o mesmo com os professores. Não respondi. Segurei comigo a referência e levei dois livros a título de empréstimo em que travei contato com a cibernética, com a teoria da informação e com todo o campo delicado da formalização dos dados a respeito da comunicação humana implicadas neste universo de pesquisas. Infelizmente nenhum livro de Bateson estava entre os exemplares que levei comigo.

Não levou muito tempo e, já de volta a São Carlos, na biblioteca, eu estava abrindo Mente e natureza pela primeira vez. Li que:

 

Em junho de 1977 pensei ter o começo de dois livros. Um eu denominei The evolutionary idea, e o outro Every schoolboy knows. O primeiro seria uma tentativa de reexaminar as teorias da evolução biológica sob a luz da cibernética e da teoria da informação. Entretanto, ao começar a escrever aquele livro, encontrei dificuldade em elaborá-lo visando um determinado público o qual eu esperava que compreendesse as pressuposições formais e consequentemente simples do que eu estava dizendo. Tornou-se monstruosamente evidente que a escolaridade neste país (EUA), na Inglaterra e também, suspeito, em todo o Ocidente, estava tão cautelosa em evitar todos os temas críticos que eu teria que escrever um segundo livro para explicar o que pareciam para mim ideias elementares a respeito da evolução e de praticamente qualquer outro pensamento biológico ou social – seja para a vida diária ou para a ingestão do café da manhã. A educação oficial não estava ensinando às pessoas quase nada da natureza de todas essas coisas no litoral e nas florestas de sequoias, nos desertos e nas planícies. Mesmo adultos já com filhos não conseguem dar conta de forma razoável de conceitos como entropia, sacramento, sintaxe, número, quantidade, padrão, relação linear, nome, classe, relevância, energia, redundância, força, probabilidade, partes, todo, informação, tautologia, homologia, missa (newtoniana e cristãs), explicação, descrição, regra de dimensões, tipo lógico, topologia e assim por diante. O que são borboletas? O que são estrelas-do-mar? O que são a beleza e a feiura?

            Pareceu-me que a descrição de algumas dessas ideias elementares poderia ser intitulada, com um pouco de ironia, “Every Schoolboy Knows”.” (p. 11-12, da edição brasileira; p. 3 da primeira edição norte-americana).

 

A ironia com que Bateson introduz ao argumento de seu livro me cortou ao meio. Serviu como a derradeira mão do morto-vivo que não me deixa sair do cemitério. A lista de coisas a respeito das quais qualquer estudante colegial deveria saber passava ao largo de qualquer coisa que eu soubesse dissertar a respeito. Alvo da situação irônica que o livro tanto denuncia quanto pretende remediar, na medida de suas forças, via que estava chegando atrasado em um assunto que já se desenrolava há muito tempo. Eu não sabia como contrabalancear as demandas de um curso de graduação que manteria o esforço em me afastar da discussão de temas e conceitos básicos da atividade científica contemporânea e a necessidade emergente de saber articular melhor o que eu pensava com as diferentes escalas e objetos que as ciências experimentais modernas desenvolveram nos últimos três séculos.

Os tópicos do capítulo que mostraram não somente que o rei estava nu, mas que também seu reinado já havia acabado durante a Revolução Francesa, dissertam sobre temas como o mapa não é o território, a inexistência de qualquer experiência objetiva, sobre o processo inconsciente da formação de imagens, sobre métodos de divisão do universo observado como isentos de qualquer caráter necessário, sobre a diferença entre número e quantidade, dentre outras tantas passagens que só reforçavam o quanto do universo ao meu redor, quase que ao alcance das minhas mãos, acontecia independente de eu conseguir compreender sua parcela mais ínfima, mesmo que a título de curiosidade ou tentativa. E ainda assim, em meio a tantos termos e demonstrações de coisas a respeito das quais eu nunca ou quase nunca ouvira falar, é a afirmação mais imperativa aquela que por fim marcou de forma indelével a primeira leitura. Tal como cada uma das pequenas demonstrações de princípios que Bateson discute como pressupostos da atividade científica, a passagem que quero ressaltar tem um título. No caso, diz que a ciência nunca prova nada science never proves anything.

 

3- Quais são as implicações de dizer que a ciência nunca prova nada? Dizer algo do gênero não implica em simplesmente negar todos os avanços e progressos que fizeram com que a química moderna e industrial abrisse mão da alquimia; que a astronomia transformasse a astrologia em escombros que aprendemos a chamar de superstição; enfim, que fizessem com que o mundo antigo fosse situado no seu lugar de fato e de direito, o da memória daquilo que passou e, portanto, é passado? Bom, para sermos honestos a resposta para esta série de perguntas é: não. E o contrário dessa afirmação tampouco é verdadeira. Assim, o que está em questão ao dizer que a ciência nunca prova nada não é o esquecimento dos diversos avanços tecnológicos que a divulgação científica tanto se esforça em enfatizar como os principais feitos da humanidade. O que está em questão na negativa de Bateson – a ciência nunca prova nada – é que ainda que os feitos mais estonteantes estejam listados como resultados da atividade científica – a teoria da evolução; a teoria da gravitação dos corpos; a termodinâmica; a química orgânica; a teoria da relatividade; a datação de compostos inertes mediante o decaimento do Carbono 14; o cálculo; a álgebra não-linear; teoria da informação -, todos estes resultados decisivos não podem nos deixar esquecer que aquele que produz ciência, o cientista, segue sendo um organismo no qual os limites que a metodologia científica imprime na capacidade proposicional da própria ciência é correlata aos limites que o organismo humano tem para participar do ecossistema que lhe circunda. Assim, a atividade científica, antes de ser científica, é uma atividade. É definida como um método de percepção e, como tal, está limitada em sua habilidade de reconhecer os sinais visíveis do que possa ser verdadeiro buscando atentar para aquilo que é com relação ao momento, também histórico, da observação, e não para aquilo que deveria ser a despeito do momento em que se dá a atividade perceptiva.

Para o leitor mais avisado este tipo de raciocínio não é exatamente uma novidade. Em grande medida o que temos em mãos é a ampliação do argumento de David Hume sobre as dúvidas céticas sobre as operações do entendimento presentes em sua Investigação sobre o entendimento humano (An enquiry concerning human understanding, de 1775). Na seção em questão o que se enuncia é a complexa correspondência entre as relações de ideias (relations of ideas) e as questões de fato (matters of fact). Sendo a primeira série de relações aquelas que compõem a geometria, a álgebra e a aritmética, elas têm sua verdade pela correta proporção do conteúdo daquilo que é afirmado, o que se faz mediante sua demonstração. Assim, a soma dos ângulos de um triângulo equivalendo a 180 graus diz respeito à descrição daquilo que invariavelmente compõe o triângulo.

As questões de fato, por sua vez, introduzem o tempo e a percepção como variáveis daquilo que pode ser afirmado, o que faz da sua apuração um problema à parte. O caráter preditivo de uma relação de ideias não é problemático uma vez que uma ideia não precisa acontecer para além de sua própria afirmação. O caráter preditivo de uma questão de fato, por sua vez, é todo o problema pois é aí que reside a lacuna do tempo futuro em que afirmação de que algo aconteceu não carrega consigo nenhum sinal de que vá acontecer novamente, fazendo com que o nexo presente-passado-futuro se transforme na problematização da constituição de séries de acontecimentos. Isto por si só implica também na dificuldade em conseguir definir o evento que constitui o fato uma vez que o acesso àquilo que se apresenta como sendo o mundo deixou de ser auto-evidente.

 

O contrário de toda questão de fato permanece sendo possível, porque não pode jamais implicar contradição e a mente o concebe com a mesma facilidade e clareza, como algo perfeitamente ajustável à realidade. Que o sol não nascerá amanhã não é uma proposição menos inteligível nem implica mais contradição que a afirmação de que ele nascerá e seria vão, portanto, tentar demonstrar sua falsidade. Se ela fosse demonstrativamente falsa, implicaria uma contradição e jamais poderia ser distintamente concebida pela mente.” (Hume, 1999:44)

 

O que Hume faz, por fim, é advogar em favor do conhecimento experimental para que possam ser feitas as investigações apropriadas a respeito das questões de fato, que se correspondem sempre de maneira imperfeita com as relações de ideias. Uma dessas imperfeições, convém notar, é a formação de hábitos que permitem tomar ideias como se fossem fatos somente pela repetição quase que automática com que nos utilizamos delas. Daí o detalhe importante de que as relações entre causa e efeito não são imediatamente evidentes, assim como a relação entre fato e acontecimento uma vez que o efeito é um acontecimento distinto de sua causa. Não podendo ser descoberto na sua causa, a sua primeira invenção ou concepção tomada a priori deve ser inteiramente arbitrária. Antes de poder estabelecer um regime de proporções adequado de forma a inferir a causa do efeito, e o acontecimento que preside o fato, é necessário reunir uma série de outros efeitos pertinentes à sua determinação. Assim, é a série de fatos, tanto quanto os fatos isolados, aquilo que constitui o desafio da atividade teórica e científica que, por fim, nunca prova nada porque está sempre trabalhando com um cheque caução que pode ser sustado a qualquer momento, o que aproxima Bateson do falibilismo de Karl Popper. E aqui devo voltar a Gregory Bateson mais uma vez. Com ele, a aposta de que teoria é envolvimento com tudo aquilo que acontece é reiterada mais uma vez.

(continua)

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Mente e Natureza – fotografia feita no Museu de História Natural de Paris, 2013 (foto de Bernardo Curvelano Freire)

Bibliografia.

 

BATESON, Gregory. Mente e natureza: a unidade necessária. trad. Claudia Gerpe. Francisco Alves. Rio de Janeiro.  1986. (Mind and nature: a necessary unity. 1979)

HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano. trad. José Oscar Marques. Unesp. São Paulo. 1999. (An enquiriy concerning human understanding. 1775)

Um comentário sobre “DEF-GHI indeed (parte 1 de 2)

  1. O meu contato com a obra de Gregory Bateson se deu depois dos cinquenta anos de idade. No início do século XXI, decidi que morrer somente engenheiro seria muito pouco. Neste momento, por causa de vários motivos, entendi que deveria pegar parte do conhecimento que foi possível obter pelo paradigma cartesiano, hegemônico, e hiberna-lo em algum lugar. Não me preocupei muito onde guardá-lo, pois tive uma sensação neste momento, de que talvez não fosse necessário despertá-lo um dia.
    A descoberta de Gregory Bateson se deu via cibernética, pois era uma área de conhecimento que vinha trabalhando profissionalmente, com aplicação de modelos matemáticos em controle industrial para aquecimento na siderurgia. Desejoso de pensar estes conceitos ligados ao comportamento humano encontrei Bateson, também através de Mente e Natureza, na biblioteca da PUC PR, onde fazia um curso de gestão ambiental. Algo curioso me chamou a atenção, era um único exemplar e a ficha de reserva indicava que o mesmo havia sido reservado somente uma vez (ou que talvez a ficha fosse nova). Pude atestar a minha primeira suspeita ao conversar com colegas de turma e professores quando confirmei um completo desconhecimento .
    Deste momento em diante foi um caminhar de descobertas (el camino se hace caminando) de inúmeros outros seres humanos, de formações diferentes, e até engenheiros, que se dedicaram e se dedicam na consolidação de um novo olhar, um novo paradigma para construção de novas ferramentas que possibilitem um maior entendimento da vida em toda a sua complexidade.

    ” Este libro deleitará a todos aquellos que, proviniendo de las ciencias duras o blandas, humanas o sociales, de la filosofia o la prática social, hayan “resistido a la vida cotidiana” y mantenido la pasión por esas preguntas inocentes y fundacionales de la epistemologia: qué es conocer? qué es aquello que puede ser conocido? qué son las ideas? cuál es la sustancia de ese misterio inmediato que llamamos la mente? A aquellos que en su camino se alejaron de ellas les recordará la magia de preguntárselas”
    (Una unidade Sagrada – Pasos ulteriores hacia una ecologia de la mente. Gregory Bateson – Gedisa Editoria – ISBN 84-7432-480-7).

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